1. |
Requiem para Valentim
03:53
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Miragem, Sombra, Universo
Quarto-camarim reverso
Onde ceifam a razão
Por seres fauno redentor
Tentaram esvair a cor
Que sangravas de paixão
Por anos de noite crua
Calaram-te a alma nua
Sonhada livre ao relento
Coragem que se fez morte
Num país deixado à sorte
De ser apenas cinzento
Ai, Valentim, livre escultura
Afogaram-te em loucura
Nesse crime que abomino
Na prisão feita ribalta
És dança que aos céus se exalta
Serás sempre bailarino
Chora e dança
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2. |
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Nós, do fado abichanado
Somos touro. E viado
Do chão, levantado
Feroz e armado
De canções, um punhado
Manifesto, advogado
Até que o último touro ao prado
Seja roubado
Pra ser torturado
Não é bailado, sonata ou trinado
É fantasma do passado
Cruel, dissimulado
Um lindo massacre ornado
De cultura disfarçado
Carrascos de traje floreado
Proletário brasonado
Com o aval do bom prelado
O casto e o encarnado
Cada hóstia, seu ditado
O aval do bom prelado
O casto e o encarnado
Toda a hóstia é só ditado
Não é gado, não é gado
Mas que povo, mas que Estado?
Queremos o touro respeitado
Nem toureiro nem forcado
Pegado, atado, largado, garraiado
Não é gado
É um animal assustado
Perdido, acossado
Ferido, aviltado
Para gáudio do povo usado
Mas que povo? Mas que Estado?
Perdido, acossado
Ferido, aviltado
Para gáudio do povo usado
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3. |
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A Princesa Diana morreu. Vi o funeral em direto na televisão, sentado no sofá da minha avó, a comer cereais. O príncipe William e o príncipe Harry seguiam o caixão tão compostos, tão bonitos naqueles fatos. Vi-me a mim naquele cortejo, cheio de dignidade aos olhos do mundo inteiro, sem deitar uma lágrima. Já não me lembro se eles choraram... mas acho que não.
Eu sou um maricas.
E sou gordo.
Nunca poderia ser um príncipe.
A quem é que interessa a minha tristeza?
Fui passear a Boy, a cadela que a minha avó trouxe e achava que era um cão e eu dei-lhe o nome de Boy, mas afinal é uma cadela e agora só responde por esse nome. Enquanto a Boy corria, pus-me a cantar a música da Janet Jackson. Li que é sobre o melhor amigo dela, que morreu com sida. Já percebi que eu também vou morrer com sida, acho que é inevitável.
Quando for adulto, vou-me embora, vou para outro país, só falo com a minha família ao telefone, assim eles nunca saberão. Não quero que tenham vergonha disto que eu sou.
De ser tão fraco que não respondo aos rapazes que gozam comigo na escola e na rua. Nem levanto a cabeça. Às vezes, até finjo que estou doente para não ir à escola, acordo de manhã e o meu primeiro pensamento é a humilhação. Não aguento mais o olhar de pena das minhas amigas quando eles me empurram, ou me cospem ou gritam quando eu entro na cantina, a chamar-me maricas e a dizer para lhes chupar a pila, à frente de toda a gente. Já fiquei sem almoçar tantas vezes só para não levar com aquilo. Não posso dizer a nenhum adulto... porque aí eles saberão e vão olhar-me com aqueles olhos de pena.
Pena de eu ser tão maricas.
Será que vou viver tranquilo alguma vez? Não passar o dia inteiro com medo, a olhar por cima do ombro, a tentar controlar a voz, as mãos, os corredores por onde posso ir no recreio, a dar voltas sozinho ao bairro, durante horas, à espera que eles se vão embora do banco da rua para não ter de passar por eles?
Eu ainda nem percebi se sou mesmo gay mas eles pelos vistos já sabem.
A música da Janet Jackson faz-me sempre chorar, é como se fosse sobre mim.
Só tenho 12 anos mas parece que já carrego uma sentença de morte.
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4. |
Lila Fadista
03:19
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A Lila Fadista, bicha ativista
Diz a tradição
É, nesta Lisboa, figura de proa
Da nossa canção
Figura bizarra, que ao som da guitarra
O fado viveu
Trocava de amores mas os seus valores
Jamais os vendeu
Ó Lila Fadista, a tua linda história
O tempo gravou na nossa memória
Ó Lila Fadista, a tua voz ecoa
Nas noites bairristas, boémias, fadistas
Da nossa Lisboa
Batom e perfume escondem o queixume
E o cheiro a solidão
De bicha sonora, que teme e adora
A febre e a tesão
Chinela no pé, um ar de ralé
No jeito de andar
Se a Lila passava, Lisboa parava
Para a ouvir cantar
Ai, Lila Fadista, sem rede nem pista
Rugir de leão
Não pede louvores e atiça as cores
Do teu coração
Ó Lila Fadista, a tua linda história
O tempo gravou na nossa memória
Ó Lila Fadista, a tua voz ecoa
Nas noites bairristas, boémias, fadistas
Da nossa Lisboa
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5. |
De costas voltadas
03:00
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Nunca fui o que quiseste
Fui sempre o que não gostavas
Deitei fora o que me deste
Pedi-te o que não me davas
Fui abraço de serpente
E beijo amargo limão
Fui um filho sem ser gente
Mão que é prego noutra mão
Fui promessa perdida
E rosto que não se encara
Dor que não chega a ser ferida
E até por isso não sara
Foi noites sem madrugadas
Cuidado sem aflição
Estamos de costas voltadas
Do berço ao caixão
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6. |
Crónica do maxo discreto
03:00
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Estás a cem metros de mim
No teu carro, no Cristo Rei
Não mando fotos assim
Eu não sou gay
Só quero experimentar
Novos desejos
Mas sem nos vermos
Pouco dizermos
E nada de beijos
De quem eu gosto é da minha namorada
Vá lá, entende
Ela não pode saber de nada
Não mandes mais mensagens
Que eu vou apagar o Grindr
De quem eu gosto é da minha namorada
Ontem foi mesmo rés-vés
Por sorte, ela não viu
Não pode haver mais cafés
Eu e tu, junto ao rio
Para de falar de amor
Eu não sou mau
A culpa disto
Digo e insisto
É do meu pau
De quem eu gosto é da minha namorada
Vá lá, entende
Ela não pode saber de nada
Não mandes mais mensagens
Que eu vou apagar o Grindr
De quem eu gosto é da minha namorada
De quem eu gosto, não posso
Eu quero, eu gosto
Não posso, eu posso, eu sei
De quem eu gosto, eu quero
Posso, não sei
De quem eu gosto é da minha namorada
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7. |
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Se não esqueceste
O amor que me dedicaste
E o que escreveste
Nas cartas que me mandaste
Esquece o passado
E volta para meu lado
Porque já estás perdoado
De tudo o que me chamaste
Volta meu querido
Mas volta como disseste
Arrependido
Do mal que me fizeste
Haja o que houver
Já basta p'ra meu castigo
Essa mulher
Que andava agora contigo
Se é contrafeito
Não voltes, toma cautela
Porque eu aceito
Que vivas antes com ela
Pois podes crer
Que antes prefiro morrer
Do que contigo viver
Sabendo que gostas dela
Só o que eu peço
É uma recordação
Se é que mereço
Um pouco de compaixão
Deixa ficar
O teu retrato comigo
Para eu julgar
Que ainda durmo contigo
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8. |
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Prata da casa
Filho do pai
Um olho de sangue e o outro tão seco que dói
Sono perdido no breu da herança
Sonhas perdido na paz da matança
Vã glória
Derrotar, exterminar
(Dinastias)
Vã glória
Derrotar, exterminar
Eu, pobre mortal, equidistante de tudo
Eu, primeira filha da minha mãe que depois me tornei
Eu, velha aluna dessa escola dos suplícios, amazona do meu desejo
Eu, cadela no cio do meu sonho vermelho
Eu reivindico o meu direito de ser uma monstra
Nem homem nem mulher
Nem XXY nem H2O
Reivindico o meu direito de ser uma monstra
E que os outros sejam o normal
O Vaticano normal
O creio-em-deus-pai-e-virgíssima normal
E os pastores e os rebanhos do normal
Eu terei uma teta da lua mais obscena na minha cintura
E um pénis ereto das cotovias
E sete sinais
Setenta e sete sinais, não
Setecentos e setenta e sete sinais
Da endiabrada marca da minha criação
Eu sou a monstra
Que te tiraria o sono se pudesses dormir
Eu sou a monstra
Que habita os teus sonhos na orla de te redimir
Eu sou a monstra
Que deixas atada, com arame farpado, num poço, a extinguir
Eu sou a montra
Do que odeias e temes, te dá nojo e faz rir
Do que odeias e temes, te dá nojo e faz rir
Mas eu ardo na noite
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9. |
Fado Ribeiro Santos
02:19
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Faz tanto frio em Portugal
Só casas velhas, infecundo
Doente da sua oratória
Mas nem mil demãos de cal
Tapam o poço sem fundo
Da nossa débil memória
Subo a calçada, constrita
Tão cansados os meus ossos
Mais o frio que os flagela
Olho e penso que ele me fita
Emergindo dos destroços
Debruçado na janela
Enche-se o largo de novo
O chão, os prédios, a igreja
Guardam marcas do desnorte
Era outro e o mesmo povo
Pena que ainda cá esteja
A velar a própria morte
À janela, ele está inteiro
Virá à rua deserta
Antes, olha-a em suspensão
No ar baço de janeiro
Buscando a centelha certa
De gozo ou revolução
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10. |
Fogo na casa
05:00
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Já cheguei a fim
E dentro de mim
O desejo inflado entorna o caldo
Inunda o dique, perturba o saldo
Pus todas as fichas, gastei o meu latim
Já cheguei a fim
Fogo na casa
Vontade na asa
A tua boca no vão da minha escada
Lá onde a fraqueza impera molhada
Sôfrega, dou-me à tua língua em brasa
Fogo na casa
Tenho no corpo
Torrente de lava
Medo que eriça
Fome que cava
Não peço desculpa
Não baixo o olhar
Não finjo uma gula
Pra ser o teu par
Desejos profanos
Estão nos meus planos
Num conto furtivo
Rimam com ânus
Não tenho vergonha
Eu já não me privo
Ponha ponha, é tão bom
Ser passivo
Há lume no cais
E eu louque por mais
Mais fundo, forte, mais doce e eu peço
Rebolo, eu sei o que quero e mereço
Dou tudo e, se gosto, assento arraiais
Há lume no cais
E tanto poder
Em te receber
O cu é prazer, não tem alegoria
Lá fora, é só guerra e misoginia
Fecha a janela, vem-me comer
Não peço desculpa
Não baixo o olhar
Não finjo uma gula
Pra ser o teu par
Desejos profanos
Estão nos meus planos
Num conto furtivo
Rimam com ânus
Não tenho vergonha
Eu já não me privo
Ponha ponha, é tão bom
Ser passivo
O gesto não mente
Filhe de boa gente
Aprendo uma nova conduta
Nesse movimento, mora a minha luta
Papa do meu corpo
Puta e presidente
O gesto não mente
Tenho no corpo
Torrente de lava
Medo que eriça
Fome que cava
Tenho no corpo
Torrente de lava
Lambe que eriça
Entra que cava
Não peço desculpa
Não baixo o olhar
Não finjo uma gula
Pra ser o teu par
Desejos profanos
Estão nos meus planos
Num conto furtivo
Rimam com ânus
Não tenho vergonha
Eu já não me privo
Ponha ponha, é tão bom
Ser passivo
Bicha abusada, rota, passiva
Sou Vénus molhada, Madalena e Shiva
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11. |
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Quando ela passa
Ginga, meneia, é de raça
O meu coração fracassa
Por saber que são batalha
Os dias dela
Em cada rua ou viela
Más rimas deixam sequela
E resiste como calha
Passa audaz,
Com porte de tanto faz
E nem olha para trás
Se são fachos ou são fãs
Lembro-me quando
Nos conhecemos e disse
O meu nome é Alice
E sou uma mulher trans
Voz de leoa
Conhece meia Lisboa
Às vezes, fala à toa
Escolheu não se esconder
Ela acordou
Já vestida, agarrou
No batom e no Foucault
Foi pra rua ter prazer
Boa de prosa
Fez-se pantera vaidosa
E coloriu-se de rosa
Deu ao cravo nova cor
Língua sem tento
Que já foi deitar fermento
Lá para os lados de São Bento
Que se cumpra o seu furor
Sim, é aquela tensão permanente entre a forma como nos apresentamos aos outros e a forma como os outros nos percebem, independentemente dos nossos esforços de nos apresentarmos de X maneira ou não e as tensões que existem sobre isso. Porque, às vezes, apresentarmo-nos de uma forma que não passa acriticamente à visão dos outros provoca um estranhamento e uma reação: eu me apresentar enquanto mulher e as pessoas decidirem que não é o caso provoca, às vezes, reações muito viscerais, pode provocar reações violentas muito fortes ou… de outros tipos de violência, mais simbólica mas tão real quanto… os murros que já levei.
Lembro-me quando
Nos conhecemos e disse
O meu nome é Alice
E sou uma mulher trans
Eu, todos os dias, antes de sair de casa, faço uma análise, tento perceber como é que me sinto, tento perceber qual é o nível de violência que eu estou disposta a sofrer nesse dia. E, conforme, escolho o que é que vou vestir, como é que me vou maquilhar, como é que me vou apresentar ao mundo. E saio.
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12. |
Povo Pequenino
02:38
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Era o povo pequenino, pés descalços na geada
Era o povo pequenino, na cartilha da pancada
Era o povo pequenino, já puxava pela enxada
Era o povo pequenino, a chorar na tabuada
Morder os dentes, lamber os beiços
Molhar pão velho na caldeirada
Ai, povo pequenino
Pés na lama do destino
Ai, povo pequenino
Pés na lama do destino
Não te pesa o coração
Com o chumbo da lição?
Não te pesa?
Ai, povo pequenino
Tão humilde e cabotino
Ai, povo pequenino
Tão humilde, tão escarninho
Não te dói no coração
O estilhaço do canhão?
Não te pesa?
No mar, a boiar, são cravos
No fundo, há feitos escravos
Ai, quanto do teu sal?
Ó, povo pequenino
Pobre povo pequenino
Ó, povo pequenino
Pobre povo pequenino
Não te pesa o coração?
Tanto medo da canção?
Tanto amor ao bastão
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Fado Bicha Lisbon, Portugal
O Fado Bicha é um projeto musical e ativista criado e desenvolvido por Lila Fadista, na voz e letras, e João Caçador, nos instrumentos e arranjos. O projeto assume-se de intervenção, começando na representatividade da comunidade LGBTI, e adensando-se pelos temas que abordamos e as posições em que nos colocamos, falando sobre género, colonialismo, racismo, feminismo e direitos dos animais. ... more
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