We’ve updated our Terms of Use to reflect our new entity name and address. You can review the changes here.
We’ve updated our Terms of Use. You can review the changes here.

OCUPA​Ç​Ã​O

by Fado Bicha

/
  • Streaming + Download

    Includes unlimited streaming via the free Bandcamp app, plus high-quality download in MP3, FLAC and more.
    Purchasable with gift card

      €10 EUR  or more

     

1.
Miragem, Sombra, Universo Quarto-camarim reverso Onde ceifam a razão Por seres fauno redentor Tentaram esvair a cor Que sangravas de paixão Por anos de noite crua Calaram-te a alma nua Sonhada livre ao relento Coragem que se fez morte Num país deixado à sorte De ser apenas cinzento Ai, Valentim, livre escultura Afogaram-te em loucura Nesse crime que abomino Na prisão feita ribalta És dança que aos céus se exalta Serás sempre bailarino Chora e dança
2.
Nós, do fado abichanado Somos touro. E viado Do chão, levantado Feroz e armado De canções, um punhado Manifesto, advogado Até que o último touro ao prado Seja roubado Pra ser torturado Não é bailado, sonata ou trinado É fantasma do passado Cruel, dissimulado Um lindo massacre ornado De cultura disfarçado Carrascos de traje floreado Proletário brasonado Com o aval do bom prelado O casto e o encarnado Cada hóstia, seu ditado O aval do bom prelado O casto e o encarnado Toda a hóstia é só ditado Não é gado, não é gado Mas que povo, mas que Estado? Queremos o touro respeitado Nem toureiro nem forcado Pegado, atado, largado, garraiado Não é gado É um animal assustado Perdido, acossado Ferido, aviltado Para gáudio do povo usado Mas que povo? Mas que Estado? Perdido, acossado Ferido, aviltado Para gáudio do povo usado
3.
A Princesa Diana morreu. Vi o funeral em direto na televisão, sentado no sofá da minha avó, a comer cereais. O príncipe William e o príncipe Harry seguiam o caixão tão compostos, tão bonitos naqueles fatos. Vi-me a mim naquele cortejo, cheio de dignidade aos olhos do mundo inteiro, sem deitar uma lágrima. Já não me lembro se eles choraram... mas acho que não. Eu sou um maricas. E sou gordo. Nunca poderia ser um príncipe. A quem é que interessa a minha tristeza? Fui passear a Boy, a cadela que a minha avó trouxe e achava que era um cão e eu dei-lhe o nome de Boy, mas afinal é uma cadela e agora só responde por esse nome. Enquanto a Boy corria, pus-me a cantar a música da Janet Jackson. Li que é sobre o melhor amigo dela, que morreu com sida. Já percebi que eu também vou morrer com sida, acho que é inevitável. Quando for adulto, vou-me embora, vou para outro país, só falo com a minha família ao telefone, assim eles nunca saberão. Não quero que tenham vergonha disto que eu sou. De ser tão fraco que não respondo aos rapazes que gozam comigo na escola e na rua. Nem levanto a cabeça. Às vezes, até finjo que estou doente para não ir à escola, acordo de manhã e o meu primeiro pensamento é a humilhação. Não aguento mais o olhar de pena das minhas amigas quando eles me empurram, ou me cospem ou gritam quando eu entro na cantina, a chamar-me maricas e a dizer para lhes chupar a pila, à frente de toda a gente. Já fiquei sem almoçar tantas vezes só para não levar com aquilo. Não posso dizer a nenhum adulto... porque aí eles saberão e vão olhar-me com aqueles olhos de pena. Pena de eu ser tão maricas. Será que vou viver tranquilo alguma vez? Não passar o dia inteiro com medo, a olhar por cima do ombro, a tentar controlar a voz, as mãos, os corredores por onde posso ir no recreio, a dar voltas sozinho ao bairro, durante horas, à espera que eles se vão embora do banco da rua para não ter de passar por eles? Eu ainda nem percebi se sou mesmo gay mas eles pelos vistos já sabem. A música da Janet Jackson faz-me sempre chorar, é como se fosse sobre mim. Só tenho 12 anos mas parece que já carrego uma sentença de morte.
4.
Lila Fadista 03:19
A Lila Fadista, bicha ativista Diz a tradição É, nesta Lisboa, figura de proa Da nossa canção Figura bizarra, que ao som da guitarra O fado viveu Trocava de amores mas os seus valores Jamais os vendeu Ó Lila Fadista, a tua linda história O tempo gravou na nossa memória Ó Lila Fadista, a tua voz ecoa Nas noites bairristas, boémias, fadistas Da nossa Lisboa Batom e perfume escondem o queixume E o cheiro a solidão De bicha sonora, que teme e adora A febre e a tesão Chinela no pé, um ar de ralé No jeito de andar Se a Lila passava, Lisboa parava Para a ouvir cantar Ai, Lila Fadista, sem rede nem pista Rugir de leão Não pede louvores e atiça as cores Do teu coração Ó Lila Fadista, a tua linda história O tempo gravou na nossa memória Ó Lila Fadista, a tua voz ecoa Nas noites bairristas, boémias, fadistas Da nossa Lisboa
5.
Nunca fui o que quiseste Fui sempre o que não gostavas Deitei fora o que me deste Pedi-te o que não me davas Fui abraço de serpente E beijo amargo limão Fui um filho sem ser gente Mão que é prego noutra mão Fui promessa perdida E rosto que não se encara Dor que não chega a ser ferida E até por isso não sara Foi noites sem madrugadas Cuidado sem aflição Estamos de costas voltadas Do berço ao caixão
6.
Estás a cem metros de mim No teu carro, no Cristo Rei Não mando fotos assim Eu não sou gay Só quero experimentar Novos desejos Mas sem nos vermos Pouco dizermos E nada de beijos De quem eu gosto é da minha namorada Vá lá, entende Ela não pode saber de nada Não mandes mais mensagens Que eu vou apagar o Grindr De quem eu gosto é da minha namorada Ontem foi mesmo rés-vés Por sorte, ela não viu Não pode haver mais cafés Eu e tu, junto ao rio Para de falar de amor Eu não sou mau A culpa disto Digo e insisto É do meu pau De quem eu gosto é da minha namorada Vá lá, entende Ela não pode saber de nada Não mandes mais mensagens Que eu vou apagar o Grindr De quem eu gosto é da minha namorada De quem eu gosto, não posso Eu quero, eu gosto Não posso, eu posso, eu sei De quem eu gosto, eu quero Posso, não sei De quem eu gosto é da minha namorada
7.
Se não esqueceste O amor que me dedicaste E o que escreveste Nas cartas que me mandaste Esquece o passado E volta para meu lado Porque já estás perdoado De tudo o que me chamaste Volta meu querido Mas volta como disseste Arrependido Do mal que me fizeste Haja o que houver Já basta p'ra meu castigo Essa mulher Que andava agora contigo Se é contrafeito Não voltes, toma cautela Porque eu aceito Que vivas antes com ela Pois podes crer Que antes prefiro morrer Do que contigo viver Sabendo que gostas dela Só o que eu peço É uma recordação Se é que mereço Um pouco de compaixão Deixa ficar O teu retrato comigo Para eu julgar Que ainda durmo contigo
8.
Prata da casa Filho do pai Um olho de sangue e o outro tão seco que dói Sono perdido no breu da herança Sonhas perdido na paz da matança Vã glória Derrotar, exterminar (Dinastias) Vã glória Derrotar, exterminar Eu, pobre mortal, equidistante de tudo Eu, primeira filha da minha mãe que depois me tornei Eu, velha aluna dessa escola dos suplícios, amazona do meu desejo Eu, cadela no cio do meu sonho vermelho Eu reivindico o meu direito de ser uma monstra Nem homem nem mulher Nem XXY nem H2O Reivindico o meu direito de ser uma monstra E que os outros sejam o normal O Vaticano normal O creio-em-deus-pai-e-virgíssima normal E os pastores e os rebanhos do normal Eu terei uma teta da lua mais obscena na minha cintura E um pénis ereto das cotovias E sete sinais Setenta e sete sinais, não Setecentos e setenta e sete sinais Da endiabrada marca da minha criação Eu sou a monstra Que te tiraria o sono se pudesses dormir Eu sou a monstra Que habita os teus sonhos na orla de te redimir Eu sou a monstra Que deixas atada, com arame farpado, num poço, a extinguir Eu sou a montra Do que odeias e temes, te dá nojo e faz rir Do que odeias e temes, te dá nojo e faz rir Mas eu ardo na noite
9.
Faz tanto frio em Portugal Só casas velhas, infecundo Doente da sua oratória Mas nem mil demãos de cal Tapam o poço sem fundo Da nossa débil memória Subo a calçada, constrita Tão cansados os meus ossos Mais o frio que os flagela Olho e penso que ele me fita Emergindo dos destroços Debruçado na janela Enche-se o largo de novo O chão, os prédios, a igreja Guardam marcas do desnorte Era outro e o mesmo povo Pena que ainda cá esteja A velar a própria morte À janela, ele está inteiro Virá à rua deserta Antes, olha-a em suspensão No ar baço de janeiro Buscando a centelha certa De gozo ou revolução
10.
Fogo na casa 05:00
Já cheguei a fim E dentro de mim O desejo inflado entorna o caldo Inunda o dique, perturba o saldo Pus todas as fichas, gastei o meu latim Já cheguei a fim Fogo na casa Vontade na asa A tua boca no vão da minha escada Lá onde a fraqueza impera molhada Sôfrega, dou-me à tua língua em brasa Fogo na casa Tenho no corpo Torrente de lava Medo que eriça Fome que cava Não peço desculpa Não baixo o olhar Não finjo uma gula Pra ser o teu par Desejos profanos Estão nos meus planos Num conto furtivo Rimam com ânus Não tenho vergonha Eu já não me privo Ponha ponha, é tão bom Ser passivo Há lume no cais E eu louque por mais Mais fundo, forte, mais doce e eu peço Rebolo, eu sei o que quero e mereço Dou tudo e, se gosto, assento arraiais Há lume no cais E tanto poder Em te receber O cu é prazer, não tem alegoria Lá fora, é só guerra e misoginia Fecha a janela, vem-me comer Não peço desculpa Não baixo o olhar Não finjo uma gula Pra ser o teu par Desejos profanos Estão nos meus planos Num conto furtivo Rimam com ânus Não tenho vergonha Eu já não me privo Ponha ponha, é tão bom Ser passivo O gesto não mente Filhe de boa gente Aprendo uma nova conduta Nesse movimento, mora a minha luta Papa do meu corpo Puta e presidente O gesto não mente Tenho no corpo Torrente de lava Medo que eriça Fome que cava Tenho no corpo Torrente de lava Lambe que eriça Entra que cava Não peço desculpa Não baixo o olhar Não finjo uma gula Pra ser o teu par Desejos profanos Estão nos meus planos Num conto furtivo Rimam com ânus Não tenho vergonha Eu já não me privo Ponha ponha, é tão bom Ser passivo Bicha abusada, rota, passiva Sou Vénus molhada, Madalena e Shiva
11.
Quando ela passa Ginga, meneia, é de raça O meu coração fracassa Por saber que são batalha Os dias dela Em cada rua ou viela Más rimas deixam sequela E resiste como calha Passa audaz, Com porte de tanto faz E nem olha para trás Se são fachos ou são fãs Lembro-me quando Nos conhecemos e disse O meu nome é Alice E sou uma mulher trans Voz de leoa Conhece meia Lisboa Às vezes, fala à toa Escolheu não se esconder Ela acordou Já vestida, agarrou No batom e no Foucault Foi pra rua ter prazer Boa de prosa Fez-se pantera vaidosa E coloriu-se de rosa Deu ao cravo nova cor Língua sem tento Que já foi deitar fermento Lá para os lados de São Bento Que se cumpra o seu furor Sim, é aquela tensão permanente entre a forma como nos apresentamos aos outros e a forma como os outros nos percebem, independentemente dos nossos esforços de nos apresentarmos de X maneira ou não e as tensões que existem sobre isso. Porque, às vezes, apresentarmo-nos de uma forma que não passa acriticamente à visão dos outros provoca um estranhamento e uma reação: eu me apresentar enquanto mulher e as pessoas decidirem que não é o caso provoca, às vezes, reações muito viscerais, pode provocar reações violentas muito fortes ou… de outros tipos de violência, mais simbólica mas tão real quanto… os murros que já levei. Lembro-me quando Nos conhecemos e disse O meu nome é Alice E sou uma mulher trans Eu, todos os dias, antes de sair de casa, faço uma análise, tento perceber como é que me sinto, tento perceber qual é o nível de violência que eu estou disposta a sofrer nesse dia. E, conforme, escolho o que é que vou vestir, como é que me vou maquilhar, como é que me vou apresentar ao mundo. E saio.
12.
Era o povo pequenino, pés descalços na geada Era o povo pequenino, na cartilha da pancada Era o povo pequenino, já puxava pela enxada Era o povo pequenino, a chorar na tabuada Morder os dentes, lamber os beiços Molhar pão velho na caldeirada Ai, povo pequenino Pés na lama do destino Ai, povo pequenino Pés na lama do destino Não te pesa o coração Com o chumbo da lição? Não te pesa? Ai, povo pequenino Tão humilde e cabotino Ai, povo pequenino Tão humilde, tão escarninho Não te dói no coração O estilhaço do canhão? Não te pesa? No mar, a boiar, são cravos No fundo, há feitos escravos Ai, quanto do teu sal? Ó, povo pequenino Pobre povo pequenino Ó, povo pequenino Pobre povo pequenino Não te pesa o coração? Tanto medo da canção? Tanto amor ao bastão

about

OCUPAÇÃO

O título do álbum traduz um duplo movimento. Por um lado, o projeto Fado Bicha simboliza a ocupação de um património ao qual as pessoas como nós acederam apenas condicionalmente ao longo do tempo ou, pelo menos, desde que há registos que permitem traçar uma história do fado. As pessoas lgbti, embora façam parte dessa história e também da prática atual do fado, dificilmente puderam criar e deixar um legado artístico que refletisse integralmente as suas experiências e identidades. Falamos das letras escritas, das possibilidades de expressão desenvolvidas, das experimentações permitidas. E falamos de bem-estar e saúde mental também. Há uma rigidez cisheteronormativa no fado (tanto na prática artística como na indústria que a sustenta) que espelha e talvez até ultrapasse a que encontramos na sociedade portuguesa ou na comunidade musical como um todo e que exclui muitas vivências e particularidades.
Ainda se sente muito no fado o efeito que a ditadura lhe imprimiu, ao longo de mais de quarenta anos, apropriando-se dele e usando-o como bandeira. Apresentarmo-nos como Fado Bicha e criarmos um álbum que bebe desse património de uma forma genuína e sem pedir licença a ninguém é ocupar um lugar que não existia senão em fantasia, é sentar à mesa numa cadeira que não estava lá.
Por outro lado, o título reflete também a própria ideia de trabalho, de prática contínua, articulando a liberdade e a ideia de responsabilidade individual e coletiva, que é como encaramos a pesquisa e a ação artivista que subjazem ao nosso projeto.

O nosso primeiro álbum surge após cinco anos de trabalho e desenvolvimento do Fado Bicha, depois de mais de duzentos concertos em Portugal, no Brasil e outros seis países europeus. Condensa dois anos de colaboração com Luís Clara Gomes, o produtor do álbum, músico português conhecido como Moullinex. E reúne releituras de canções que cantamos quase desde o início com novas criações que apontam caminhos diferentes para a nossa música no futuro, divergindo das estruturas clássicas do fado mas mantendo o seu caráter autêntico, dramático e confessional em elementos dos arranjos de João Caçador e na voz crua de Lila Tiago. Para este álbum, convidámos algumas artistas da cena queer portuguesa, que são nosses pares e amigues. Symone de la Dragma, passarumacaco, Labaq e Trypas Corassão são as colaborações listadas, em voz, instrumentação, co-composição e/ou coprodução. Alice Azevedo (uma atriz e ativista trans) e Bernardo Araújo (um jovem poeta de 13 anos) fazem também aparições em duas faixas do álbum e há uma composição que foi partilhada com Adriano Cintra, ex-músico da banda brasileira Cansei de Ser Sexy, e também fados clássicos de Alfredo Marceneiro ou Frederico Valério, com novos arranjos e leituras conceptuais. Das doze faixas, sete são composições inteiramente originais e nove têm letras originais.
Liricamente, o álbum percorre alguns lugares associados a uma experiência queer em Portugal no século XXI, recorda e homenageia várias figuras da nossa precária ancestralidade, como Valentim de Barros (em "Requiem para Valentim") ou Gisberta Salce (em "Medusa-me") ou da nossa comunidade viva, como Alice Azevedo (em "Fado Alice"), faz críticas mordazes ou contundentes à masculinidade tóxica ("Crónica do maxo discreto" ou "Medusa-me"), aborda dores e dissabores das identidades bichas num mundo em que a rejeição é a nossa língua materna ("De costas voltadas" ou "Fado do ciúme") e ensaia hinos de afirmação e recuperação do lugar de subalternidade ("Lila Fadista" e "Fogo na casa"). Há ainda um aspeto muito importante de reflexão da realidade portuguesa, um país de tradição patriarcal, colonialista e racista, em que a discussão do passado esclavagista é ainda um tabu, assim como a realidade de desigualdade racial atual e onde um partido neofascista acaba de se sagrar como terceira força política. Faixas como "ESTOURADA", "Fado Ribeiro Santos" e "Povo pequenino" oferecem chaves de leitura poética do passado e presente de Portugal que traduzem a frustração e preocupação de Lila e João com a incapacidade coletiva de se pensar a liberdade como uma prática necessariamente diária e desconfortável.
Gostamos de pensar que "OCUPAÇÃO" é um manual de sobrevivência queer em forma de música e discurso, com muito da dor, do luto, da exaltação e da luta que fazem parte das vidas das pessoas lgbti em Portugal em 2022.

credits

released June 3, 2022

license

all rights reserved

tags

about

Fado Bicha Lisbon, Portugal

O Fado Bicha é um projeto musical e ativista criado e desenvolvido por Lila Fadista, na voz e letras, e João Caçador, nos instrumentos e arranjos. O projeto assume-se de intervenção, começando na representatividade da comunidade LGBTI, e adensando-se pelos temas que abordamos e as posições em que nos colocamos, falando sobre género, colonialismo, racismo, feminismo e direitos dos animais. ... more

contact / help

Contact Fado Bicha

Streaming and
Download help

Redeem code

Report this album or account

If you like Fado Bicha, you may also like: